sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Deusa tríplice ))0(( - origens & reinterpretações

Muitos praticantes da Wicca e da Bruxaria Moderna conhecem a figura da Deusa Tríplice. Talvez essa seja a imagem mítica mais básica da Tealogia. Acredita-se também que elas são elaborações imagéticas totalmente contemporâneas. Mas se não for bem assim?? Pois bem, essa triplicidade de deusa-mãe é bem mais antiga do que se imagina. A interpretação, porém, em "Jovem, Mãe e Anciã" pode ser mais moderna, devido a influência da literatura de Robert Graves. Todavia, a imagem das Mães, Matres ou Matronaes tríplas datam desde o século I E.C. (ou antes), como veremos ao londo deste artigo.
Segundo Miles Clifford, a Grã-Bretanha antiga abrigava um número incalculável de deuses e espíritos, que variavam desde cultos locais britânicos relacionados à água até religiões de mistério orientais com origens sírias.

O culto mais popular em Corinium (ou Corínia) e arredores (Corinium foi o assentamento romano-britânico em Cirencester, no atual condado inglês de Gloucestershire), na época romana, parece ser o das Matres ou Mães. Descobertas arqueológicas em sítios dentro e ao redor de Cirencester (tais como Ashcroft, Watermoor Road e Daglingworth) atestam a existência de um culto local popular, com numerosos relevos, altares e imagens representando as Mães, que geralmente se apresentam em forma tripla (placas esculpidas com figuras de 3 mulheres/deusas).

Os relevos acima, datados do século II ou III d.C., retrata três deusas sentadas, esculpidas em calcário oolítico local. Foram recuperados de um sítio arqueológico em Ashcroft, em 1899. O volume de material recuperado no local parece indicar a presença de um grande santuário ou templo dedicado, pelo menos em parte, às essas Matres. Este potencial templo destaca a importância das deusas-mãe para os habitantes da Corínia romana (Grã-Bretania romana), com um edifício religioso situado no centro cívico da região.

A arqueóloga celtista Miranda Aldhouse-Green afirma que o número 3 é muito importante e simbólico nas mitologias celtas e muitas imagens femininas trinas são encontradas nas regiões onde viviam os povos que hoje os estudiosos chamam de celtas. Nos revelos acima, estão, à esquerda, três deusas-mães portando pães, frutas e cereais, possivelmente representando a colheita e a fartura e, à direita, três deusas-mães, estando a do centro carregando um bebê.

Embora o culto às Matres pareça ter sido particularmente popular e significativo em Corínio (Grã-Bretânia), não se tratava de um fenômeno exclusivamente local. Dedicações e altares às deusas-mãe podem ser encontrados em todas as províncias do norte da Europa do Império romano. Dados arqueológicos indicam que a evidência mais antiga do culto às Matres data do século I d.C., em um sítio na Gália, atual França. Essa evidência parece sugerir que o culto às Matres pode ter sido trazido para a Grã-Bretanha durante a conquista romana de 43 d.C. e popularizado nos séculos seguintes. Entretanto, essa imagem tripla da deusa-mãe foi assimilada pelas populções celtas locais, pois estes já tinham relação de culto com divindades femininas e, por tanto, fizeram associação da imagem da deusa-tripla com uma deusa que já possuíam na sua própria região.

Esse fato pode ser atestado na placa de altar mostrada acima, com a inscrição "Suleviae", também encontrada em Cirencester, junto à imagem das Matres. As deusas-mães podem, então, ter sido amplamente conhecidas por esse nome nessa região. Isso é revelado pelo estudo de evidências epigráficas (baseadas em inscrições), como a placa na imagem acima, recuperado no sítio arqueológico de Ashcroft em 1899. Essa inscrição, assim como outras em Bath e arredores, refere-se às Mães como Suleviae, um nome local que indica uma clara conexão com Sulis, uma deusa celta cultuada principalmente em Bath. É provável que as Matres fossem conhecidas por outros nomes locais, em qualquer província romana onde tivessem presença, como na Germânia, onde são comumente chamadas de Matronae ou Matronas.

Este ícone, na imagem acima à esquerda, parece representar a deusa-mãe sentada ao lado dos 'Genii Cucullati' ou espíritos encapuzados, e foi recuperado arqueologicamente em Cirencester em 1964. Na imagem à direita, uma placa das deusas-mães encapuzadas encontrada no forte romano Housestead - na Muralha de Adriano (Northumberland, Inglaterra). A função desses espíritos é desconhecida, embora possam ter representado a fertilidade ao lado da deusa-mãe ou oferecido proteção às divinas Matres. Curiosamente, eles aparecem com muita frequência junto às imagens e altares dedicados às Matres em toda a região de Cotswolds, especialmente no possível sítio arqueológico do templo em Cirencester.

Muitos detalhes sobre o Culto das Matres são desconhecidos ou baseiam-se em grande parte em um conjunto fragmentário de evidências arqueológicas. Uma certeza singular em relação ao culto da deusa-mãe é a relação entre a Corínia romana (Grã-Bretania romana) e as deusas-mãe, que talvez representassem uma divindade padroeira para a capital de uma importante província romana.

Segundo Ralph Häussler, elas são geralmente chamadas de "Mães", Matres ou, na Gália Cisalpina e na Renânia (Alemanha), de Matronae. Embora o termo atestado em inscrições latinas seja de origem latina, as placas são encontadas em regiões "celtas" e germânicas (Bretânia-romana, França e Alemanha) e não há equivalentes a "mães" ou "matronas" na religião romana (as Parcas romanas são diferentes). O nome Matres, ou no dativo matribus - "às mães", soa bastante semelhante ao equivalente celta, como as dedicatórias matrebo de Nîmes e Glanum (ambos na França).

Mesmo que essa tríade de deusas-mãe seja difundida nas províncias romanas ocidentais, bem como na Gália Cisalpina, existem obviamente inúmeras variações como na iconografia e, talvez, também na função. Abaixo um exemplo de deusas-mãe (Dea) encontrada em Nethersheim, Alemanha:
Além disso, também obtemos outros nomes:

Suleviae: 'a que guia', é um teônimo celta bem documentado no sul da Gália na época romana. Este pode ser um sobrenome que representa uma das funções das deusas-mãe.

Proxumae: "deusas da proximidades", que parecem ser semelhantes às deusas-mãe (encontadas em Nîmes).

Iunones: no sul da Gália, as Iunones parecem ser equivalentes às deusas-mãe. Na pedra abaixo à direita, refere-se a uma tríade para Juno, semelhante as Matres.

Parcae: entalhe das "Parcas" encontrada em Nîmes (pedra abaixo à esquerda), que parecer ser uma interpretatio romana das deusas-mães triplas.

Uma interessante representação das deusas-mães/matres foi descoberta em Vasio (Vaison-la-Romaine, França) (imagem abaixo). Vemos a imagem típica das três mães, sentadas, carregando uma cesta de frutas no colo. Mas desta vez, elas estão sentadas em um pódio, em uma estrutura semelhante a um templo, do tamanho de um larário (altar doméstico). A parte de trás também é decorada com motivos vegetais.
A imagem da Deusa Trípice é a sobrevivência de uma memória muito profunda das Matronas tríplas de séculos atrás. Hoje a chamamos Jovem, Mãe e Anciã, numa reinterpretação mítica e imagética atual, derivada de novos movimentos artísticos e referente às necessidades da contemporaneidade. Esse movimento de reinterpretação é característico da Tealogia. Manteve-se, assim, viva a força da deusa secular "Matre Suleviae". Senhora da fartura, da vida e da bonança ))0((.


Texto de Lídia Valle~~

Mestra e Doutoranda em Ciências das Religiões, pela UEPA e UFPB - PPGCR, respectivamente.

Referências Bibliográficas:

Site do Museu Corinium: https://coriniummuseum.org/2019/08/mother-goddesses/

Miles Clifford é um estudante de graduação em Arqueologia na Universidade de Southampton e tem visitado a coleção do Museu Corinium como pesquisador para sua dissertação, que avalia o poder político e a influência dos cultos locais.

Site de Ralph Häussler: https://ralphhaussler.weebly.com/mother-goddesses.html

ALDHOUSE-GREEN, Miranda. Os mitos celtas - um guia para deuses e lendas antigas. Tradução Caesar Souza. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022.

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